sábado, 12 de dezembro de 2009

O Avião Fantasma








Falta a palavra inicial para dar vida a algo que insiste em nascer. Espero com os olhos fechados o sopro no ouvido ou o resgate de uma inspiração causada pelos alucinógenos. Olho para o relógio, olho para as paredes, olho para a janela e não há nada que me oferte a palavra inicial. São quatro horas e vinte quatro minutos. Olho para o telefone e sinto vontade de tirá-lo do gancho, só que a vontade e a ação se desentendem e minha mão continua ocupada tentando violar o espaço que separa os meus dedos da velha máquina de escrever. Ouço um caminhar no teto, não é um invasor, é apenas a vizinha do 222 que está com insônia. Lá fora não há barulho e nem mesmo silêncio, no entanto a algo indefinido que atrapalha o sono de todos. Brasília é realmente um lugar estranho: as pessoas não vivem aqui, apenas povoam. Não há gatos e nem cachorros correndo soltos pelas ruas e nem beijos de namorados nos portões. Por aqui não há portões, só grades e porteiros treinados para desejarem uma boa noite para todos.

Quinze para as cinco da manhã e consigo sentir toda a matéria do tempo me tocando. Os ponteiros do relógio emitem sons que ousam revelar o nome da palavra inicial e meus ouvidos tentam decifrar a dicção mecânica daquele tic tac. Talvez a palavra tenha relação com silêncio ritmado, pois entre o tic e o tac há uma ausência constante de som. Ainda assim observo atentamente cada respiração acidental dos objetos do quarto, pois sei que as respostas se encontram no improvável ou naquilo que sempre foi o que é. Suspeito apenas de que Brasília continuará sendo Brasília por longos anos e talvez a única mudança que possa acontecer seja uma variação em suas funções. Todas as madrugadas são iguais: onde há Plano tem insônia e tédio, onde há Satélite tem medo e homicídio.
Lisa Alves

9 comentários:

  1. Intrigante texto, minha cara.

    Vim avisar que saí dos blog antes de começar, pois minha produção literária está escassa e humilde, hehe.

    Obrigada de qualquer forma. Continuarei seguindo seus blogs, já que achei os textos muito bons. Parabéns pelo trabalho e que ele deslanche =).

    Beijos.

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  2. jardins inabitados pensamentos
    pretensas palavras em
    pedaços
    jardins ausenta-se
    a lua figura de
    uma falta contemplada
    jardins extremos dessa ausência
    de jardins anteriores que
    recuam
    ausência freqüentada sem mistério
    céu que recua
    sem pergunta

    ana cristina césar


    (para aqueles "eus" desterritorializados. beijo!)

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  3. Esse texto foi inspirado nesse filme?
    Nunca ouvi falar, é bom?
    bjs

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  4. Oi Rafael, na verdade o texto não foi inspirado, mas é como se fosse, levando em consideração o estado morto do cidadão brasiliense. O filme foi produzido em Brasilia e é do cenário mais underground.

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  5. brasília.
    ouvir você dizer da insônia me faz pensar com mais carinho de brasília,em você e em todos que a cidade tem que velar.

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  6. "onde há Plano tem insônia e tédio, onde há Satélite tem medo e homicídio." Levei um pouco dessa impressão durante o tempo que morei em BSB...

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  7. Coisa pra pensar,,, me doeu a cabeça,,, rs

    Ando tão pobre pra letura... perdoe-me...

    Gostei mesmo de "Lá fora não há barulho e nem mesmo silêncio, no entanto há algo indefinido que atrapalha o sono de todos",,, pois tem mesmo desse "barulho" que tange a alma...

    Bjs e intrigantes invenções!

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  8. Um momento insone, a inspiração distante, um retrato certeiro do vazio da cidade planejada. E momentos ímpares como "toda a matéria do tempo me tocando", "respiração acidental dos objetos do quarto", dentre outros. Todas as madrugadas são iguais: onde há uma estrela, há luz a brilhar. A estrela é você, Lisa.

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  9. E Satélite girará irremediável e ininterruptamente ao redor do Plano. Até que as fronteiras se confundam.

    Muito bom!

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